Nicotina: Vilã, Vício… ou Ferramenta Mal Compreendida?

Durante décadas, a palavra “nicotina” foi quase sinónimo de “cancro do pulmão”. Foi colocada no mesmo saco que o fumo do tabaco — e, em parte, isso salvou vidas. Mas há um problema: a ciência mostra que a nicotina, isoladamente, não é o monstro que pintaram.

Hoje, investigadores e neurocientistas voltam a olhar para esta molécula com curiosidade. Não como droga recreativa, mas como uma substância neuroativa complexa, com riscos reais… e potenciais benefícios que ninguém esperava.

O que é, afinal, a nicotina?

A nicotina é um alcaloide natural encontrado em plantas da família Solanaceae — a mesma das batatas, tomates e beringelas. Em doses mínimas, até está presente em alimentos comuns.

O seu poder vem da forma como atua no cérebro: liga-se a recetores nicotínicos de acetilcolina, desencadeando a libertação de dopamina, noradrenalina e acetilcolina — neurotransmissores ligados ao foco, motivação e prazer.

É essa libertação de dopamina que explica tanto o prazer imediato como o potencial de dependência. E é também o que faz da nicotina uma das substâncias mais fascinantes e controversas do ponto de vista neurobiológico.

O lado luminoso: foco, atenção e neuroproteção

Vários estudos — entre eles Cognitive Effects of Nicotine, Meta-analysis of the Acute Effects of Nicotine and Smoking on Human Performance e investigações recentes discutidas por Andrew Huberman — mostram que pequenas doses de nicotina melhoram a atenção, o tempo de reação e a memória de trabalho, sobretudo em tarefas monótonas.

Outros trabalhos sugerem que a nicotina pode ter efeitos neuroprotetores, especialmente em doenças como Parkinson, onde estudos epidemiológicos e meta-análises apontam para um risco reduzido entre fumadores — provavelmente devido à ação da nicotina nos recetores cerebrais dopaminérgicos.

Já no caso do Alzheimer, os resultados são mais mistos: alguns ensaios clínicos com adesivos de nicotina mostraram melhorias discretas em défices cognitivos ligeiros, mas as meta-análises mais recentes não confirmam ganhos significativos a longo prazo.

Há até quem defenda que, usada em doses controladas e sem fumo, a nicotina atua como um nootrópico natural — uma substância capaz de amplificar certas funções cognitivas.

Não é coincidência que muitos utilizadores relatem maior foco, clareza mental e até melhor humor após uma pequena dose. A questão é: a que custo?

O preço: dependência, coração e hormonas

A nicotina não é classificada como carcinogénica pela Agência Internacional para a Pesquisa em Cancro (IARC). No entanto, estudos em modelos celulares indicam que pode promover o crescimento de tumores pré-existentes, ao estimular a formação de novos vasos sanguíneos (angiogénese).

Ou seja, não causa cancro diretamente, mas pode favorecer ambientes biológicos que o alimentam — especialmente em indivíduos com lesões pré-cancerígenas.

Além disso, a nicotina aumenta o ritmo cardíaco e a pressão arterial, o que pode agravar doenças cardiovasculares em uso prolongado.

Do ponto de vista hormonal, interfere com o eixo endócrino: aumenta o cortisol de forma aguda e, em uso crónico, pode reduzir a testosterona, especialmente em homens.

E, acima de tudo, cria dependência — não tanto pelo prazer, mas pelo ciclo rápido de recompensa dopaminérgica que o cérebro aprende a exigir.

A sensação de clareza e motivação é temporária. Quando o efeito passa, há um vazio — e o corpo pede mais.
É assim que o “uso controlado” facilmente se transforma em hábito diário.

Tabaco: o verdadeiro vilão da história

O problema do século XX não foi a nicotina em si — foi o tabaco.
O fumo contém mais de sete mil compostos, entre os quais dezenas de carcinogéneos e metais pesados.

A nicotina, por si só, não mata; mas mantém as pessoas ligadas ao fumo que mata.
Durante anos, isso criou uma confusão: a ciência e a opinião pública passaram a ver a nicotina como culpada pelos danos do tabaco, quando na verdade era apenas o “gancho” químico do vício.

Hoje, a distinção é clara: a nicotina é aditiva, o tabaco é tóxico.
Mas o estigma ficou — e, por ironia, acabou por travar o avanço da investigação científica sobre os potenciais usos terapêuticos da nicotina.

O paradoxo moderno: pouches, spray e “biohackers”

Em 2025, há uma nova geração de utilizadores que consome pouches de nicotina sem tabaco, convencida de que está a “tirar partido” da molécula de forma segura.

Mas a verdade é que muitos desses produtos libertam quantidades de nicotina iguais ou superiores às de um cigarro, como mostra o estudo Small pouches, but high nicotine doses.
Outros, contudo, têm doses mais baixas (4–6 mg), conforme análises da FDA em 2024.
Ou seja, nem todos são iguais — o risco depende da dose e da frequência de uso.

Nas redes sociais, multiplicam-se os testemunhos de quem combina nicotina e cafeína para alcançar níveis extremos de foco. É uma experiência estimulante — mas também uma sobrecarga para o sistema nervoso e cardiovascular.

A linha entre o biohacking e o abuso é, aqui, perigosamente fina.

Então… a nicotina é boa ou má?

Depende.
Depende da dose, da forma de consumo e da intenção.

Usada de forma crónica, sem controlo, ou associada ao tabaco, a nicotina é prejudicial.
Mas em contextos clínicos ou experimentais, com doses precisas e sem fumo, pode revelar propriedades cognitivas e neuroprotetoras interessantes.

O problema é que, no mundo real, quase ninguém a usa dessa forma.
E é por isso que, fora de laboratório, a nicotina continua a ser mais uma armadilha do que uma ferramenta.

A nicotina não é o inimigo — mas pode não ser a solução

A nicotina não é o vilão absoluto — é uma ferramenta bioquímica com dois gumes.
Pode melhorar o foco, aliviar o tédio e até proteger o cérebro, mas também pode criar uma dependência subtil que condiciona o comportamento e afeta a saúde cardiovascular.

Foi injustamente demonizada durante décadas, mas seria igualmente ingénuo tratá-la como um suplemento inofensivo.
A verdade está no meio: a nicotina é poderosa, e merece respeito, não romantização.

No fim, talvez o que nos faça mais falta não seja nicotina — seja clareza mental sem dependência.

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