Quando a Ciência avança mais depressa do que a Medicina consegue acompanhar

Um estudante de Medicina de 1980 e um de 2025 aprendem muitas coisas em comum — mas vivem realidades completamente diferentes.
O conhecimento médico, que outrora se mantinha válido durante décadas, hoje envelhece em poucos anos… às vezes em meses.

A cada nova descoberta, parte do que estava nos manuais deixa de refletir o estado atual da ciência. E num sistema de ensino ainda mais centrado em tratar do que em prevenir, a medicina arrisca-se a estar sempre a correr atrás da própria sombra.

Mas até que ponto isso continua a ser verdade? E que sinais mostram que o cenário está a mudar?

Quando os livros já nascem velhos

Um estudo publicado no Journal of Medical Internet Research (Jeffery et al., 2012) avaliou quatro grandes recursos médicos de referência e descobriu que entre 23% e 60% dos tópicos precisavam de atualização em relação às evidências mais recentes.

Mesmo plataformas online, que teoricamente são “vivas”, mostraram-se lentas a incorporar novos estudos.
Agora imagina os livros impressos — que demoram anos a ser editados, revistos e publicados. Quando chegam às estantes, parte do seu conteúdo já está desatualizado.

Esta obsolescência tem uma explicação simples: o conhecimento médico tem uma “meia-vida” muito curta.
Na década de 1950, estimava-se que o conhecimento médico duplicava a cada 50 anos; em 2010, a cada 3,5 anos; e, segundo um relatório da McKinsey (2023), com a aceleração digital e a integração da inteligência artificial (IA), essa duplicação pode ocorrer agora em poucos meses.

A consequência é óbvia: a ciência avança mais depressa do que os sistemas de ensino conseguem acompanhar.
Mas, curiosamente, é a própria tecnologia que começa a corrigir essa falha.

O peso da indústria farmacêutica no ensino

Outro ponto muitas vezes ignorado é quem financia o que se ensina.

Estudos como o de Tanne et al. (BMJ, 2007) mostraram que a maioria das faculdades de Medicina nos EUA mantém ligações financeiras com empresas farmacêuticas — através de patrocínios, bolsas de investigação ou parcerias.

Artigos mais recentes, como When Big Companies Fund Academic Research (The Conversation, 2019), alertam que o financiamento empresarial pode influenciar não só a investigação, mas também quais os temas que ganham destaque e quais são deixados para segundo plano.
É natural que se invista mais em medicamentos do que em prevenção, porque é aí que o retorno económico é maior.

E, embora estas relações não impliquem necessariamente manipulação de resultados, revelam como o ensino médico pode ser condicionado por interesses externos.

Por que razão quase não se ensina prevenção

Diversos estudos sobre educação médica mostram que a nutrição ocupa um espaço muito reduzido nos currículos de Medicina — em muitos casos, menos de 25 horas ao longo de todo o curso.
Num inquérito a 106 escolas médicas norte-americanas (Adams et al., AJCN, 2006), apenas 38% das instituições cumpriam o mínimo de 25 horas recomendado pela National Academy of Sciences.

É natural que um médico não tenha de ser nutricionista, mas espera-se que compreenda o suficiente sobre metabolismo, alimentação e estilo de vida para orientar os seus pacientes de forma informada.
Quando a formação dedica centenas de horas à farmacologia e terapêutica medicamentosa e apenas algumas à nutrição e prevenção, cria-se um desequilíbrio difícil de ignorar.

O resultado é um sistema que forma profissionais altamente competentes a diagnosticar e tratar, mas menos preparados para prevenir — precisamente numa era em que as doenças crónicas (obesidade, diabetes tipo 2, hipertensão, inflamação sistémica) são as principais causas de doença e de morte.

Não se trata de transformar médicos em nutricionistas, mas de garantir que compreendem o suficiente para integrar a alimentação, o movimento, o sono e o estilo de vida como partes essenciais da medicina moderna, e não como detalhes opcionais.

A medicina também está a evoluir

Apesar das falhas estruturais, seria injusto pintar um quadro pessimista.
A medicina está a adaptar-se — e depressa.

As plataformas digitais como UpToDate, BMJ Best Practice e PubMed permitem acesso a informação quase em tempo real.
A IA generativa já é usada em universidades como Harvard e Stanford para criar simulações clínicas com realidade virtual, ajudando estudantes e médicos a manterem-se atualizados.
Um artigo recente no New England Journal of Medicine (2024) discute precisamente como a IA está a integrar-se na educação médica, melhorando a aprendizagem e a análise crítica da evidência.

Além disso, os programas de formação médica contínua (CME) tornaram-se obrigatórios em muitos países — os médicos têm de acumular créditos anuais para manter a licença profissional, precisamente porque a ciência evolui a um ritmo impossível de acompanhar apenas com o que se aprendeu na universidade.

A medicina baseada na evidência (EBM) também representa um avanço: incentiva a revisão constante de práticas clínicas com base em estudos recentes, e promove uma cultura de atualização contínua.

Outras barreiras: tempo, regulação e cansaço

Mesmo com tecnologia, há limites humanos.
Os médicos leem, em média, 10 a 20 horas por semana para se manterem atualizados — um esforço considerável, mas insuficiente face à avalanche de novos dados (segundo inquéritos recentes da Doximity).
O burnout médico é real e está a crescer, agravado pela pressão de acompanhar avanços científicos enquanto se mantém uma prática clínica extenuante.

Outro obstáculo é a regulação: entidades como a FDA (EUA) e a EMA (Europa) são prudentes por natureza, o que significa que novas evidências demoram a traduzir-se em novas diretrizes ou medicamentos aprovados.
Essa lentidão cria a sensação de que a medicina “anda atrás da ciência”, quando na verdade o processo é deliberadamente conservador — para proteger o público.

As evidências em nutrição mudam de forma quase tão rápida quanto as modas alimentares. Há debates legítimos — entre a dieta mediterrânica, o jejum intermitente, o veganismo ou a cetogénica — que mostram como é difícil ensinar uma “verdade absoluta” sobre o que devemos comer. O que hoje parece consenso, amanhã pode ser revisto.

A tecnologia e o indivíduo como aliados

A boa notícia é que a revolução digital não está apenas nas universidades — está nas mãos de cada pessoa.
Dispositivos de monitorização contínua, testes genéticos e aplicações de saúde permitem acompanhar, medir e melhorar a própria saúde de forma personalizada.
A IA e os dados em tempo real podem ajudar tanto médicos como pacientes a tomar decisões mais informadas e preventivas.

Em última análise, a tecnologia pode estar a devolver parte do controlo ao paciente consciente, tornando-o participante ativo — e não apenas um recetor passivo de prescrições.

A Medicina está a mudar

A crítica de que “a medicina é ensinada para resolver, não para prevenir” tem fundamento, mas o cenário está a mudar.
A ciência avança depressa, é verdade, mas a medicina também está a adaptar-se — através da inteligência artificial, da formação contínua, da colaboração interdisciplinar e da crescente valorização da prevenção.

O futuro não passa por rejeitar a medicina, mas por modernizá-la: combinar rigor científico com ferramentas digitais e consciência individual.

Talvez o futuro da medicina não esteja apenas nos laboratórios ou nas universidades, mas também nas decisões diárias de cada pessoa informada.

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